Em maio deste ano, uma decisão proferida pelo juiz estadual André de Souza Brito, no projeto Justiça Itinerante Maré/Manguinhos, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, garantiu, de maneira inédita, o reconhecimento da identidade gênero de uma mulher transexual após sua morte, e reiterou a importância do judiciário brasileiro na garantia dos direitos das pessoas trans e travestis, lançando luzes para a ausência de segurança jurídica desse grupo, inclusive para usufruir os direitos e liberdades mais essenciais.
A sentença determinou a retificação do nome e do gênero de Samantha, uma jovem transexual que havia iniciado o processo para mudança do nome, mas faleceu antes de sua conclusão. Essa decisão atendeu a um pedido da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (do Nudiversis — Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual), que levou adiante o pedido da mãe de Samantha para alteração do nome agora também na certidão de óbito.
Embora a decisão esteja de acordo com valores e preceitos do ordenamento jurídico brasileiro, a começar pela Constituição, ainda não é comum a adoção da perspectiva da diversidade de gênero nos julgamentos, com a percepção das peculiaridades e vulnerabilidades que circundam as pessoas transexuais e travestis. E essa é uma demanda antiga das pessoas trans que tinham suas identidades e vidas apagadas após suas mortes.
Em um caso muito similar, em que os pais de uma mulher transexual já falecida ingressam em juízo pedindo a alteração de seu nome para Victoria, por ser o nome que a filha havia adotado e com o qual se identificava e era reconhecida socialmente, o entendimento da 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, de 2019, foi no sentido da impossibilidade de alteração do nome, por se tratar de direito personalíssimo, que se extingue com a morte. Além da decisão desfavorável, as referências à Victoria no voto relator foram sempre no masculino (“o filho”, “o interessado”), ignorando não apenas seu gênero feminino mas também afrontando sua existência e memória familiar, bem como a memória do grupo de pessoas transgêneras. Além disso, desconsiderando todas as dificuldades em torno da retificação do nome, a desembargadora relatora argumentou que, como Victoria já havia atingido a maioridade quando faleceu, ela poderia ter pleiteado o direito de alteração do nome e do gênero em vida. Temos nesse caso não só o luto com a vida que se perdera, mas também uma ofensa à sua memória e identidade, trata-se de uma dupla morte a que pessoas transgêneras são submetidas.
De acordo estimativas da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em torno de 65% das pessoas trans ainda não conseguiram a retificação pela dificuldade de acesso a informações necessárias para organizar o processo, assim como os custos que não são isentos em muitos estados, especialmente aquelas moradoras das periferias, em territórios de favelas e cidades do interior. Há ainda empecilhos vindo dos órgãos cartorários que, em muitos casos, exigem laudos ou dificultam a retificação para pessoas trans registradas em outros municípios.
O direito à autoidentificação de gênero para pessoas transexuais e travestis está ligado à liberdade de expressão, ao direito de identidade de gênero, igualdade e não discriminação, conforme Opinião Consultiva n. 24/17, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADI 4275 e RE 670.422. Neste último julgado, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, a partir do reconhecimento do direito à identidade de gênero, derivado este da própria dignidade da pessoa humana, foi fixada a seguinte tese: “O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa”.
O entendimento da Corte Constitucional brasileira, por meio desses leading cases, também deixou nítido que o direito à identidade de gênero, por ser adstrito à esfera do autorreconhecimento, da autopercepção e da identidade, independe de modificações corporais de qualquer tipo.
Assim, o direito à autoidentificação de gênero, embora se enquadre no rol dos direitos individuais ligados à personalidade, é um direito guarda-chuva, que abriga tanto os direitos e procedimentos necessários para sua plena fruição individual — como, por exemplo, o direito à alteração do prenome e/ou do sexo, quanto os direitos de fruição coletiva — como, por exemplo, o acesso a espaços segregados por gênero (banheiros em locais públicos ou privados de livre circulação) e a proteção da dignidade póstuma das pessoas transexuais e travestis mortas ou falecidas.
A inclusão do direito à memória e a proteção da dignidade póstuma (e dos procedimentos funerários relativos) no rol dos direitos abrigados no direito à autoidentificação de gênero exige a adoção de uma outra perspectiva, nas relações com o Estado e também entre particulares. A retificação do nome e/ou do gênero é um procedimento que materializa ou expressa um direito de personalidade que tem traços de interesse coletivo e público, por estar intrinsecamente relacionado à construção de uma sociedade mais justa e ao fortalecimento de valores ligados à tolerância à diversidade e à igualdade. Por isso, nos casos de morte ou falecimento de pessoas transexuais e de travestis, a extinção dos direitos personalíssimos em razão do óbito não significa o apagamento da memória individual, familiar, grupal e coletiva da vida da pessoa morta.
É que o direito à memória nunca se restringe à pessoa morta ou falecida, mas alcança a coletividade e o grupo ao qual essa pessoa pertencia e se integrava em vida. Por outro lado, a dignidade póstuma tem ligação intrínseca com a liberdade de ser e de se expressar exercida em vida, além de ser um desdobramento natural da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado brasileiro, nos termos do artigo 1º inciso III da Constituição.
No caso dos corpos das pessoas transexuais e travestis entregues às famílias para os rituais de despedida, o respeito à memória e o dever de valorização da dignidade póstuma encontram desafios legais e sociais quando o direito à autoidenticação não é respeitado; ou quando se parte do equivocado pressuposto que esse direito à autoidentificação se extingue com o óbito, por ser um direito personalíssimo, e que por esse motivo, a partir de então, a família pode definir as características do defunto, inclusive as de gênero.
Um exemplo emblemático é o de Alana Azevedo, em 2021, na cidade de Aracaju que, por imposição da família, teve sua identidade descaracterizada e foi velada usando terno, gravata e um bigode falso em seu rosto, para marcar a designação de gênero anterior, como se ela fosse um homem, a única identidade aceitável naquele seio familiar. Circularam, nas redes sociais e matérias jornalísticas, fotos do cadáver de Alana trajado com roupas masculinas e seu rosto desfigurado pelo desenho de uma barba. Esse ritual desumanizante de despedida, além de promover uma dupla morte, revoltou amigos e chegou ao movimento em defesa da comunidade transexual de Aracaju (SE). Em resposta ao caso e por entender que este é um problema recorrente que pessoas trans enfrentam após a morte, a vereadora Linda Brasil, vereadora transexual na cidade, protocolou um projeto de lei na Câmara que visa garantir o respeito póstumo da identidade de gênero da pessoa.
De acordo com um levantamento feito pela Revista Piauí, publicado em 2021, as prefeituras das 26 capitais brasileiras e o Distrito Federal, apenas São Paulo, Brasília e Palmas têm leis específicas sobre reconhecimento da identidade social em cerimônias de velório, sepultamento e cremação. A capital paulista foi a pioneira em garantir o nome social de travestis e pessoas trans que venham a ser sepultadas nos cemitérios públicos e particulares, em 2018. Palmas ampliou os direitos de travestis e pessoas trans em relação às cerimônias fúnebres, em 2019, por meio de decreto nº 1.726, que garante o uso do nome social em todos os registros nos serviços funerários, também mediante apresentação de requerimento por alguém da família.
Em 9 de dezembro de 2020, foi a vez de a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) aprovar uma lei que virou referência na garantia de respeito à identidade de gênero no pós-morte. A Lei Victoria Jugnet, de autoria do deputado distrital Fábio Félix (Psol-DF), foi uma resposta organizada pelos movimentos trans junto ao mandato do deputado, e garante o nome social em lápides, jazigos e certidões de óbito mesmo se pessoas trans não tiverem conseguido retificar o nome em vida. A lei é uma homenagem à mesma trans brasiliense Victoria Jugnet, falecida em 2019, e supre o déficit de justiça decorrente da negativa do Judiciário ao pedido da família, de inclusão do nome social nos documentos dos serviços funerários, no caso abordado neste texto.
É importante destacar que a resistência do judiciário e a omissão das casas legislativas à proteção do direito à memória e identidade da população trans não são um acaso, mas sim parte de um projeto de aniquilação e dizimação dessas existências, incluindo aqui sua memória. Não basta matar, não bastam os requintes de crueldade e tortura desses assassinatos: é preciso apagar completamente as identidades transexuais e travestis, é o desejo que sua destruição coletiva por completo.
Por isso, pautar e defender os direitos das pessoas trans à identidade de gênero e à memória dessa população é não só um ato político ou ideológico, mas sim o dever de todos a fim de garantir a defesa mais básica e essencial do texto constitucional que declara, como fundamentos da República, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. No final das contas, é bom poder ter a certeza de que o corpo, depois de morto, terá paz.
Autoras:
Bruna Benevides é responsável pela pesquisa anual sobre violência e violações de direitos humanos de travestis e demais pessoas trans brasileiras desde 2017 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais.
Inês Virgínia P. Soares é desembargadora federal no TRF-3, doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), especialista em Direito Sanitário pela Universidade Brasília (UnB) e autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum).
Victória Dandara é acadêmica de direito na USP, pesquisadora em direitos humanos e diretora do Núcleo Jovana Baby de Estudantes Trans e Travestis da Universidade de São Paulo.