No mês da visibilidade trans, o Irpen/PR conversou com Letícia Lanz, especialista em Gênero e Sexualidade e mulher trans
Há 18 anos o mês de janeiro no Brasil é marcado por um acontecimento histórico, quando um grupo de mulheres e homens trans foram até o Congresso Nacional reivindicar por direitos, para não serem invisibilizadas. O dia 29 ficou marcado como dia de luta para esta parte da população.
No entanto, de 2004, quando foi o ocorrido, até os dias atuais, essas questões ganharam visibilidade, mas as pessoas trans continuam sofrendo diversos preconceitos, inclusive as mais vulnerabilizadas. Ainda hoje, o Brasil não tem uma estimativa e não sabe como vivem as mulheres e os homens trans.
Por isso, no mês da visibilidade trans, o Instituto do Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado do Paraná (Irpen/PR) conversou com Letícia Lanz, especialista em Gênero e Sexualidade e mulher trans.
Letícia Lanz é psicanalista e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Gênero e Sexualidade pela mesma universidade; economista pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em administração pela mesma instituição. Em 2020, foi candidata à prefeitura de Curitiba.
Confira a entrevista na íntegra.
Irpen – Em seu livro há o relato de sua transição de gênero, ali está a sua história, acredita que com ela mais pessoas transgêneras vão poder se compreender e se aceitar?
Letícia Lanz – Meu propósito foi apenas relatar “como eu vivi e tudo que aconteceu comigo”, como na canção “Como Nossos Pais”, do nosso saudoso Belchior. Mas ficarei muito honrada se o meu relato puder servir para que outras pessoas, algumas que ainda nem se sabem transgêneras, possam se reconhecer, se entender, se aceitar e se livrarem do sofrimento de não poder se expressar no mundo como a gente realmente é.
Irpen – Em uma sociedade que é intolerante, seu livro traz o convite para o diálogo sobre as diferenças. Em sua opinião, de que forma as pessoas que não vivem essa realidade podem contribuir para reduzir o preconceito?
Letícia Lanz – Todo preconceito resulta de desinformação, de falta de conhecimento, de suspeita de que o outro possa constituir alguma ameaça pessoal para o preconceituoso. Na medida em que formos capazes de ensinar e de divulgar amplamente a verdadeira natureza das coisas e das pessoas, conseguiremos reduzir substancialmente e até eliminar o preconceito. Escrevi um relato sobre a vida da uma pessoa transgênera, no caso eu, buscando ser o mais didática possível. Parti do pressuposto que ninguém tem obrigação de saber quem eu sou ou como eu me constituí como pessoa nesse mundo. Assim, eu me propus a explicar, de modo fácil e inteligível, o que eu sou e o lugar que eu ocupo dentro do quadro social. É possível que muitos me entendam, como é possível que muitos nem me leiam, pelo simples preconceito que eu desejo combater.
Irpen – Desde 2018, com a aprovação do Supremo Tribunal Federal (STF), há a possibilidade de alteração de nome e gênero diretamente nos cartórios. De lá para cá, esse direito evoluiu?
Letícia Lanz – Infelizmente, a roda praticamente não se moveu. Nem a própria população transgênera entendeu direito a grande, a imensa conquista que foi poder fazer a mudança do nome civil – e do gênero! – com uma simples ida ao cartório mais próximo e a apresentação de umas poucas certidões legais. Muitas pessoas transgêneras, por desinformação, por falta de recursos ou mesmo por simples desleixo, ainda não se valeram dos benefícios da desjudicialização – nenhuma instância da justiça precisa mais ser acionada, e da despatologização, sim, da condição transgênera no Brasil – não se exige mais a interferência de nenhuma especialidade médica ou psi. O mais importante de tudo é que não seja interrompida a luta por uma lei votada no Congresso Nacional que garanta e dê suporte à decisão do Supremo, já que, como sabemos, uma lei poderia também desfazer a decisão unânime do plenário do STF.
Irpen – Este processo de desjudicialização atende às necessidades dos que mais precisam?
Letícia Lanz – Com toda certeza, sim, especialmente se você considerar que a principal necessidade de qualquer pessoa é ter direito a um nome que a represente socialmente, com o qual ela possa se candidatar a um emprego, matricular-se numa escola ou simplesmente interagir com as outras pessoas no seu dia a dia. Acredito apenas que os movimentos representativos de pessoas transgêneras poderiam e deveriam fazer muito mais para fazer chegar esse direito às pessoas que mais precisam dele e que são, exatamente, as pessoas mais vulneráveis da população transgênera.
Irpen – Quais foram os maiores percalços encontrados após a mudança de nome e gênero na atualização de seus novos registros e documentos?
Letícia Lanz – Não me lembro de ter encontrado nenhum percalço depois que realizei a mudança do meu nome civil e do meu gênero na minha certidão de nascimento e, a partir daí, em toda a minha documentação. Foi tudo muito tranquilo, sem nenhuma atribulação. Percalços eu tinha – e muitos – quando o meu nome no RG não batia com a pessoa que eu me apresentava publicamente. Tive muitos contratempos e aborrecimentos por causa disso.
Irpen – Em sua opinião, quais outras medidas deveriam ser tomadas em busca de uma maior garantia de direitos à população transgênera?
Letícia Lanz – Como eu já disse anteriormente, considero fundamental que o ativismo transgênero continue lutando pela aprovação de uma lei que consolide para sempre a inovadora e arrojada decisão do STF em aprovar a mudança do nome civil e do sexo de pessoas trans à luz da Constituição da República. Em outro campo, deve-se buscar uma ampliação do nível de conhecimento e informação da população em geral com respeito à natureza da condição transgênera, como forma principal para reduzir e eliminar o preconceito, a discriminação e a violência que ainda existe contra pessoas trangêneras nesse país, de maneira estrutural.
Irpen – A questão da igualdade é mais complexa que a aceitação da sociedade, mas de acordo com as suas vivências, o que deveria ser feito para que os direitos das pessoas trans sejam respeitados?
Letícia Lanz – O exercício da cidadania plena por parte de segmentos estigmatizados, discriminados e excluídos da sociedade depende da elevação do nível de formação e de informação da população em geral. É preciso antes de mais nada que o público saiba por que pessoas transgêneras são proscritas e maltratadas pela sociedade e porque não deveria ser assim, numa sociedade constituída em cima de princípios de igualdade de direitos para todos e de respeito pleno à cidadania de todos os cidadãos – e não apenas de categorias que, por presunção moral, se julgam acima de todas as demais. Só a educação tem o poder de promover essa transformação.
Irpen – O Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans, infelizmente, com pouca expectativa de vida, poucas condições e oportunidades de emprego. Em sua opinião, quais políticas públicas deveriam ser implementadas?
Letícia Lanz – Vou continuar insistindo na mesma tecla: educação ampla, geral e irrestrita da população, especialmente em questões relacionadas a gênero e sexualidade, exatamente as duas áreas em que setores reacionários e antiprogressistas da sociedade insistem em impedir e em “melar” qualquer iniciativa pedagógica. Eu acredito que, provida de recursos, a escola é capaz de fazer esse grande trabalho. O que precisamos, então, é de prover recursos orçamentários para um extenso programa de gênero e sexualidade, nas escolas e na sociedade em geral, assim como a contenção desses setores obscurantistas em seus arroubos anti-direitos humanos.
Irpen – Quais foi o seu sentimento após a retificação de sua certidão de nascimento e aos direitos adquiridos por conta dos cartórios de registro civil?
Letícia Lanz – Embora, do ponto de vista pessoal, nome nunca tenha sido importante para mim, no sentido de determinar quem eu sou, obter o reconhecimento legal do meu nome Letícia Lanz foi um momento muito especial em minha vida, um instrumento de afirmação da minha transgeneridade como condição normal de vida, e não como patologia e desvio social, como era tido anteriormente diante da lei. Tenho e terei sempre uma gratidão enorme pela atenção, carinho e acolhimento que recebi nos cartórios em que estive, durante o meu processo de mudança do nome civil e gênero. A luta não terminou, mas agora eu posso dizer que me sinto um pouco mais cidadã do Brasil – legal e legitimamente falando.
Fonte: Assessoria de Comunicação – Irpen